21/11/2016

Pares e Escolhas

Alguns minutos para pensar um par de artistas – de qualquer área – que, sendo bem distintos, tenham igual importância para mim e quem dê igual valor. Pensei alguns:

Jane Austen, Tolstoi
Cézanne, Vermeer
Wagner, Chopin
John Ford, Hitchcock
Beethoven, Bach
Turner, Velázquez
Kertez, Gustave Le Gray

Fico com o primeiro dos pares. Não diria que corresponde ao meu primeiro amor na arte, mas é aproximadamente isso, pois foi aquele que mais depressa adquiri e estudei: a literatura. De muitos e muitos autores lidos há dois que nunca me saem da cabeça, dois cujas personagens me acompanham desde sempre, dois cujas situações e lições de vida me apontam caminhos, me fazem rir, me comovem, me irritam, me enchem de sabedoria.  Regresso sempre a Jane Austen e a Tolstoi (a quem não coloco o primeiro nome, porque nunca sei se devo escrever Lev, Leo, Leon tantas são as versões que encontro).

Quando me perguntam qual dos dois escolheria (questão que já me coloquei várias vezes) responderia Tolstoi, pela simples razão de que escreveu mais páginas – a quantidade é um motivo que desde logo se impõe. Pensar que o prazer de o ler duraria mais, em termos estritamente quantitativos e/ou temporais, do que prazer de ler Jane Austen.

Esta é a resposta mais imediata, mais simples e mais simplista. Mas acredito descobrir outros motivos para essa escolha. Jane Austen conhece o ‘modo de funcionar’ das pessoas, Tolstoi conhece-lhes a alma. Jane Austen faz belíssimas caricaturas, adivinha intenções, e usa a ironia de uma forma fina e única, provocando algum distanciamento que invariavelmente interpela a nossa inteligência, obrigando-nos a ver para lá o que aparentemente percebemos. Tolstoi, no entanto é Rembrandt ou Velázquez nos seus retratos, olha as suas personagens (e olha-nos a nós através delas) de frente: olhos nos olhos. Expõe as suas fraquezas, as suas grandezas as suas contradições – expõe a alma de cada personagem (e obriga-nos a perguntarmo-nos se algumas a terão) nas suas plenitudes, nas suas contradições, nos seus vazios, (ou no soar oco daqueles que não a terão). Não há distanciamento, há proximidade, há intimidade, há confronto, (um não existe sem o outro) tantas vezes consigo próprio. Em Tolstoi a ironia é sobretudo ontológica, tem a ver com o ser. Em Austen ela é maioritariamente cognitiva ela permeia a narrativa, as acções, as intenções, os diálogos das personagens.


Ler Austen é sempre um prazer, e um desafio perceber a ironia das teias que ligam a acção: há diálogos memoráveis e deliciosos que quase conheço de cor de tão inteligentes e visionários. Ler Tolstoi é um desafio: às vezes um cavalo à solta no prado, outras vezes é árido, ou complicado, os diálogos nunca são simples, as personagens debatem-se hora a hora. Os romances, novelas ou contos são muitas vezes palavrosos, ou empolgantes, ou chatos, mas quantas vezes não senti ao lê-los o passar das horas? O prazer pode não ser tão imediato, mas somos amplamente recompensados: ganhamos em densidade e em doses massivas de humanidade.

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