10/01/2017

Literacia Emergente (3)

Continuando a ler o Perfil do Canal Antena2, vejo mais outro parágrafo que capta a minha atenção.

“As pérolas da música negra norte-americana, os compositores portugueses, a arte de bem falar e bem escrever em Português. Programas históricos extraídos dos arquivos da rádio pública, acompanhando a edição livreira, lembrando personalidades culturais influentes do passado e do nosso tempo.”


“As pérolas da música negra” é coisa fina. As pérolas ficam sempre bem sobre o negro, não vou contradizer, e a expressão poderia iluminar qualquer tentativa de expressão poética. O que me intriga é como se passa desse universo nacarado negro norte-americano para os compositores portugueses (diamantes? rubis, âmbar?) e deles para a arte de bem falar e escrever português. Ou é uma mera lista aleatória, ou só pode ser um raciocínio de génio, pois eu não o sigo.

Mas o que tenho seguido, infelizmente, é uma coisa a que chamam Palavras de Bolso que me consegue pôr num estado de – fosse eu um grande felino – investir e atacar sem piedade.

Num canal que se define primeiramente como um canal que divulga música erudita (ver post (1) e (2) onde já abordei isso), onde está o cabimento de querem ensinar-nos a falar? E a que propósito nos contam ladainhas infantilizantes (se fossem infantis era só mau, assim é bem pior) entre programas de música erudita?

Há uns dias ouvia Jonas Kaufmann em várias peças de registos diferentes num programa interessante dedicado a ele, quando de repente oiço Palavras de Bolso e, para meu horror, oiço uma história qualquer para crianças em que se explicam palavras com trava-línguas e se contam histórias com vozes de quem fala para crianças. Num outro dia liguei o rádio e ouvi algo sobre casamenteiras (Quem quer casar com a Carochinha), um texto qualquer de um autor de grande mérito não duvido, mas preferia não ser tratada como criança muito menos com pateta ou retardada. Sobretudo porque uns momentos depois ouvia um programa bei feito sobre música de ‘Adeus’, assim o autor dizia, com excertos belíssimos de Stravinsky, um Stabat Mater de um compositor polaco cujo nome já não recordo, entre outros.

Percebi que estes programas, Palavras de Bolso, são iniciativa da PROL, Programa de Literacia Emergente. Só o nome "literacia emergente" é todo um programa que deixarei de lado. No entanto não há nada como ir ver ao site o que eles dizem, e dizem logo na primeira frase:

É uma oferta educativa curricular, consistente e fiável ao nível da linguagem, literacia precoce e educação literária, destinada a crianças integradas em creches e jardins de infância, do ensino público e privado.”

Dizem o que são, qual o público alvo, e quais os objectivos (deviam ser eles a fazer o Perfil do Canal Antena2, a quem faz falta um pouco de literacia emergente ou não).

O que me intriga é o que é que isto tem a ver com a Antena2 que divulga sobretudo “música erudita” (para além das outras áreas do mundo da arte e do conhecimento em geral, de que já falei e que não se percebe bem o que é, mas adiante...). Presume-se que quem ouve música erudita, é minimamente erudito – pelo menos já frequentou a escola o primeiro e essencial passo para se aspirar a esses mínimos de erudição, pois normalmente um erudito será senhor de níveis de literacia acima da média. Assim sendo, não precisa de um programa “consistente e fiável ao nível da linguagem, literacia precoce e educação literária", muito menos "destinada a crianças”. A erudição vem também com o tempo que passa e que se vive e aprende (não há nisso precocidade) o que quer dizer que para se ser erudito (minimamente) e, neste caso, apreciador/consumidor de música erudita, ter-se-á que ser adulto. Por isso a imposição destes programas de Literacia Emergente aos ouvintes da Antena2 é um atentado à inteligência de quem assim decidiu.

Infelizmente parece que a Antena2 é um saco de gatos cognitivo, e a viver em plena crise existencial. Cada ano que passa degrada-se um pouco mais. Hoje não se sabe exactamente o que é, a quem de dirige, e que rumo deve ter. É de lamentar que em Portugal não haja um serviço público que nos ofereça um (só um) canal de rádio que divulgue música erudita e que assuma claramente dirigir-se a um público (erudito) que gosta e consome esse tipo de música. Também poderia, secundariamente, ter outras pequenas rubricas mais curtas de índole cultural de outras áreas quer a nível da divulgação, bem com entrevistas a autores, críticos, ou outros, mas sempre sem comprometer a identidade do canal, e sem cedências tontas ao politicamente correcto.


Assim temos uma Antena2 hibrida que não é nada, e que na tentativa de ser essencialmente uma coisa, mas ter uma importante componente de outra, e ser mais isto e mais aquilo, não serve ninguém. Eu devo ser um dos poucos dígitos de audiências que mantém, e só por falta de escolha e incapacidade (falta de vontade) minha de organizar música para ouvir nos trajectos de carro.

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